Introdução
Sábado à tarde, quase noite. Um
burburinho que se mistura à diversidade de sons compõe uma sinfonia bem
particular, marcando o ritmo dos passos da massa que flui pelos corredores
lustrosos e coloridos.
Os olhares são expressivos, pois
denotam um sem fim de emoções que se contrapõem: sofreguidão e desinteresse,
alegria e tristeza, satisfação e insatisfação, expectativa e decepção,
aborrecimento e prazer, curiosidade e desinteresse, cansaço e vigor, entre tantas
outras sensações.
As tribos misturam-se por entre as
vielas apinhadas, para tomar, cada qual seu espaço em territórios
definitivamente demarcados por modelos, marcas e sabores. A impressão que se
tem é que o mundo invadiu estes espaços ou que alguém, propositadamente,
condensou os espaços urbanos em um labirinto de lojas, bancos, lanchonetes e
locais de diversão, como um palco com múltiplos cenários, onde cada um tem seu
papel definido.
As pessoas que trafegam por essas
“vias de sonho” (ou de pesadelo) parecem sob o efeito de hipnose, como se ao
passar pelas portas que dão acesso ao interior desses locais, passassem a viver
a ilusão de que sabem o que vão fazer ali. E isso ocorre, porque esses espaços
foram construídos para nos dar a sensação de que entramos unicamente com um
propósito predeterminado, sobre o qual temos controle, todavia, sua função real
é nos introduzir, nos dominar e prender, no universo do consumo.
É óbvio que o leitor já deve ter
identificado que estamos falando de um shopping
center. Mas o propósito deste texto não é tratar acerca dos shoppings e os serviços que neles
encontramos. O âmago da discussão encontra-se no que eles representam como
locais públicos dentro de um fenômeno que atualmente, tem-se mostrado bastante
significativo e do qual se tornaram um ícone de indiscutível evidência: o
consumismo.
Mais do que tratar sobre consumismo,
a ideia é refletir sobre ética em um mundo, onde somos tratados, essencialmente
como consumidores e até como produto, onde somos “coisificados” e a felicidade
é exposta como o grande fim a ser alcançado na vida.
Consumismo e Utilitarismo: a ilusão da felicidade
efêmera
O mercado, cuja ética é o lucro,
apresenta o consumo como uma espécie de religião, não mais fundada em uma
mensagem de insuficiência humana e dependente de um Senhor e Salvador com seus
profetas para alcançar o paraíso, porém com a perspectiva de que somos capazes
– e de que só cabe a cada um, a decisão de chegar à experiência máxima, a um
alumbramento sem igual. De acordo com Bauman:
(...)
desligado o sonho da experiência máxima das práticas inspiradas na religião, de
abnegação e afastamento das trações mundanas, é necessário atrelá-lo ao desejo
dos bens terrenos e dispô-lo como a força condutora de intensa atividade como
consumidor. Se a versão religiosa da experiência máxima costumava reconciliar o
fiel com uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna reconcilia seus
seguidores com uma vida organizada em torno do dever de um consumo ávido e
permanente, embora nunca definidamente satisfatório. Os exemplos e profetas da
versão pós-moderna da experiência máxima são recrutados na aristocracia do
consumismo – aqueles que conseguiram transformar a vida numa obra de arte da
acumulação e intensificação de sensações, graças a consumir mais do que os que
procuram comumente a experiência máxima, consumir produtos mais refinados e
consumi-los de um modo mais requintado. (BAUMAN, 1998, p. 224)
O ato de consumir passa, portanto, a
funcionar como a panaceia que pode nos conduzir ao nirvana, onde somos
plenamente felizes, e que serve como lenitivo para as frustrações cotidianas
decorrentes dessa momentânea e ilusória satisfação, que encena uma experiência
“sobrenatural”. Neste sentido, Bauman observa que:
A
promessa de nova experiência, capaz de esmagar, de espantar o espírito ou gelar
a espinha, mas sempre animadora, é o ponto a ser realçado na venda de
alimentos, bebidas, carros cosméticos, óculos, pacotes de feriado. Cada um
acena com a perspectiva de “viver a fundo” sensações nunca experimentadas antes
e mais intensas do que qualquer antes provada. (idem)
Tudo isso provoca um comportamento
assemelhado à toxicomania, onde o usuário de determinada substância que age sobre
seu psiquismo, necessita de doses cada vez mais frequentes e em maior
quantidade para satisfazer-se, chegando assim a uma experiência momentânea de
“felicidade”, ainda que seus efeitos possam se mostrar devastadores.
Logo, é interessante que percebamos que a
ideia de felicidade, a qual nos vai sendo imposta, leva-nos a cultivar e desenvolver,
passivamente, elementos de uma conduta hedonista, onde buscamos aquilo que nos
dá prazer, que nos faz sentir confortáveis, que nos proporciona “lucro”. Este
conceito de felicidade identifica-se à visão ética do utilitarismo do filósofo,
pensador político e ativista liberal inglês John Stuart Mill. Segundo Mill:
A
doutrina que aceita a Utilidade ou o Princípio da Maior Felicidade como o
fundamento da moral, sustenta que as ações estão certas na medida em que elas
tendem a promover a felicidade e erradas quando tendem a produzir o contrário
da felicidade. Por felicidade entende-se prazer e ausência de dor, por
infelicidade, dor e privação de prazer. (MILL, 2000, p. 30)
Mill observa ainda que:
(...) o prazer e a ausência de dor são as
únicas coisas desejáveis como fim, e que todas as coisas desejáveis (que são
tão numerosas no esquema utilitarista como em qualquer outro) são desejáveis,
seja pelo prazer inerente a elas, seja como meios para promover o prazer e prevenir
a dor (idem)
Entretanto, há uma questão que fica
pendente: como, então, garantir a promoção do prazer e a prevenção da dor em um
mundo tão competitivo onde alguém sempre sai perdendo? E é fácil perceber que o
número de perdedores é bem maior do que o daqueles que vencem.
Ingenuidade? Idealismo? Não, o ponto
não é esse. Em uma sociedade onde o conceito de solidariedade pode ser
entendido como um eufemismo para barganha, o que importa é sair em vantagem,
seja negociando com Deus um “espaço no céu” em troca de um gesto caridoso, seja
doando daquilo que sobra para ganhar desconto nos impostos ou ainda, ganhando a
simpatia de clientes, patrocinadores, fornecedores com uma imagem “marqueteada”
de instituição socialmente responsável. É uma forma de nos iludirmos com a
falsa impressão de que estamos felizes porque ajudamos o outro, “fizemos o bem”
e assim estamos em paz com nossa consciência. Portanto, o verdadeiro alvo é o
“estar em paz com a consciência”, não o outro em sua necessidade.
J. P. Moreland afirma em seu livro
“O Triângulo do Reino” que, quanto mais buscamos essas “coisas desejáveis”, ou
ainda, essa ideia felicidade, mais nos voltamos para dentro de nós mesmos, o
que nos afasta de toda e qualquer dedicação a atividades que exijam um espírito
sacrificial, isto é, desprendimento, doação ao outro. E essas atividades, via
de regra, nos obrigam a deixar nossa “zona de conforto”, a sairmos do aconchego
dos casulos que confeccionamos para nós, a lidar com fatos e coisas que,
normalmente, não são atrativas ou agradáveis.
Em outras palavras, esquecermo-nos
de nós mesmos, para viver a essência do “amar ao próximo como a ti mesmo” é uma
experiência que pode trazer profundos incômodos e que, segundo Sigmund Freud, é
contraditória à própria natureza do ser humano. Ao afirmar que o mandamento de
“amar a teu próximo como a ti mesmo” exprime um dos preceitos basilares da vida
civilizada (cf. BAUMAN, 2011), Freud esclarece que:
Essa
exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o
cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto,
ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda
era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como
se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um
sentimento de surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que
bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como
isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo
jogar fora sem reflexão. (FREUD, 2012, p. 20)
Para
Freud amar ao próximo como a nós mesmos, impõe-nos deveres para os quais
devemos estar preparados e dispostos a cumprir mediante sacrifícios. Contudo, a
contradição, referida anteriormente, reside no fato do “próximo” não ser
conhecido ou semelhante a mim em quaisquer aspectos, nem sempre ser mais
perfeito do que eu e, não raro, em meu entendimento, merecer meu amor. Em outras palavras, como passar pelo
sofrimento ou entregar-me de tal forma a uma causa, pelo ou com o outro, se
esse estranho sequer é “parecido” comigo ou, ao menos vai aceitar ou
compreender minhas razões para amá-lo, se é que eu as tenho? Logo, eu preciso
de algo que fomente uma identificação, um elo entre um self que está em mim e aquele estranho a quem devo amar.
Outro ponto a ser considerado é o
fato é o amor-próprio, que só passa a existir em nós se formos amados. Segundo
Bauman:
(...)
para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação
do status de objeto digno do amor – alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é
construído a partir do amor que nos é
oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem
parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro
para que comecemos a amar a nós mesmos. (BAUMAN, 2004, p. 100)
Bauman afirma que desejamos ser respeitados, ouvidos e
que aquilo que pensamos, fazemos ou pretendemos seja levado em consideração,
pois são evidências que nos asseguram, ao menos, a esperança de que somos alvo
da atenção de alguém. Isso nos sustenta o amor-próprio e propicia a sensação,
de que “eu ‘faço a diferença’ para outros além de mim. O que digo e sou e faço
tem importância” (BAUMAN, op cit, p. 101). Como afirma Bauman:
Se
é isso que nos torna objetos legítimos e adequados do amor-próprio, então a
exortação a “amar o próximo como a si mesmo” (ou seja ter a expectativa de que
o próximo desejará ser amado pelas mesmas razões que estimulam nosso
amor-próprio) evoca o desejo do próximo ter reconhecida, admitida e confirmada
a sua dignidade de portar um valor singular, insubstituível e não
descartável.[...] Amar ao próximo como amamos a nós mesmos significaria então
respeitar a singularidade de cada um
– o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em
conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a
cornucópia de suas promessas. (idem)
Esse reconhecimento do entre os
indivíduos e a valorização dessa singularidade que cada humano apresenta,
demanda que haja um reconhecimento concomitante da igualdade entre os homens,
em natureza e como portadores do direito à dignidade. E é aí que a ética do
consumismo falha, não conseguindo estabelecer vínculos entre o eu e o outro. No máximo nos identificamos como consumidores, como membros
de um mesmo mercado e isso não é suficiente pois, como vimos, o mercado
alimenta a competição entre os homens e as instituições. Obviamente, a
competição tende a expor e reforçar as diferenças, o que invariavelmente
estimula o conflito.
Como o que importa é o prazer, a
ausência de dor, e isso me leva a focar em mim, no que quero, no que sinto, no
que penso, falta espaço para outras pessoas nesta relação, onde, no máximo
serão agentes ou instrumentos para minha satisfação. Daí, Bauman no título de
uma de suas obras, faz um questionamento que provoca de forma aguda nossa
reflexão: “A ética é possível num mundo de consumidores?”
Vale esclarecer que não estamos defendendo
aqui uma proposição à luz da filosofia de alguns autores existencialistas que
abraçaram a filosofia personalista de Martin Buber, na defesa que meu eu não é nada sem o seu e vice-versa,
pois a autoconsciência humana não pode encontrar sentido unicamente na relação
eu-tu, que se restringe “ao horizonte temporal de nossa experiência”
(DOOYEWEERD, 2010, p. 79). Nossa proposta é que o sentido ético dessa relação
transcende o próprio ego humano e volta-se à sua origem, a nosso ver de caráter
divino, atemporal e infinito. E é por distanciar-se dessa origem, que o homem
perde aquilo que poderia oferecer referências seguras para a composição deste
ego.
Esse distanciamento dá-se,
inicialmente, por um processo de rejeição ao teológico, com a sacralização da
ciência, a valorização do racional, do humanismo e do antropocentrismo, desencadeados
na Modernidade, mais especificamente com o Iluminismo, com o Positivismo de
Comte e o materialismo de Feuerbach e Marx.
Na pós-modernidade, o homem tenta
uma reaproximação com o místico, mas de uma forma humanizada, não com o ideal
de um Ser Supremo, dotado de personalidade e soberano. Essa reaproximação é
feita mediante um renovado antropocentrismo, onde a interação com o Cosmos, com
a natureza, visando um estado de bem-estar consigo, o que é incipiente para
oferecer lastros identitários ao homem, face a fluidez da qual se reveste a
vida contemporânea e seus valores.
A Ética Contemporânea: a fluidez dos valores de
referência
Como a ética
contemporânea, em sua maior expressão e em larga escala é, como vimos, uma
ética mercantilista, onde os relacionamentos estão calcados naquilo que me dá
prazer, que me oferece lucro, que atende aos meus interesses, os vínculos
interpessoais, mostram-se cada vez mais frágeis e os relacionamentos são
permeados de descompromisso e individualismos. E como o mercado mantém uma
estreita relação com o consumo, a mesma efemeridade que se verifica entre os
produtos ofertados, verifica-se nos relacionamentos que passam a ser
descartáveis, todas as vezes que não atenderam mais aos interesses dos
envolvidos. Compreensão, renúncia, espírito sacrificial e outros valores que
implicam em abdicar de nós mesmos pelo outro, passam a ser desprezados.
Os valores são fugazes e troca-se de
opinião e de necessidade com extrema facilidade. Estamos falando de “fluidez”,
uma característica própria daquilo que Bauman chama de “modernidade líquida”,
um tempo no qual, segundo ele:
(...) as organizações
sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que
asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem
mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se
decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma
vez reorganizadas, para que se estabeleçam. (BAUMAN, 2007, p. 7)
Como
consequência, evidencia-se a ausência de parâmetros mais consistentes de
referência. Esse processo é agravado pelo individualismo exacerbado, e um
cenário onde passou-se a aceitar morte e violência, diante da justificativa do
progresso científico-tecnológico, do desenvolvimento de um capitalismo
selvagem, que fomenta a competitividade, a concorrência e estimula novas necessidades
e desejos de consumo (GOMES, 2008). No pensamento de Gomes, “é nesse contexto
de não reconhecimento, de negação do outro, que Emanuel Lévinas busca dar um
sentido novo para a valorização ética do humano” (GOMES, 2008, p. 39).
A filosofia de Lévinas alcança a
percepção que o pensamento ocidental, fundado na filosofia grega,
desenvolveu-se a partir da ideia do Ser, que dominou a Antiguidade e a Idade
Média, e na era Moderna (até a contemporaneidade) centrando-se na ideia do Eu.
Assim, Lévinas inspirado pela sabedoria bíblico-judaica, adverte quanto à
urgência ética de se repensar as trilhas filosóficas com base numa visão onde o
Outro seja central. Como propõe Gomes:
A
partir da abertura do Eu ao Rosto do
outro, na concretização da relação da ética da alteridade levinasiana, é possível vislumbrar uma possibilidade de
superação da barbárie e da inumanidade da civilização contemporânea. Em outras
palavras, a remoção do totalitarismo impregnado na sociedade atual
[representado pela ação devastadora do mercado e do consumo] passa pela
necessária transformação da subjetividade totalitária [o que chamamos de “eu
consumidor”] (inserções nossas). (GOMES, op cit, p. 82)
Um Novo Paradigma de Relacionamento
Retomando o cenário do consumismo
contemporâneo, percebemos, então, que as pessoas passam a ser descartáveis por
suas peculiaridades pessoais e o que temos e somos passa a determinar nosso
valor. Formam-se assim, aquilo que chamamos de “relacionamentos de vitrine”
onde as cores e as formas valem mais do que a essência.
Relações duradouras e sólidas
demandam tempo e interesse pelo outro, fatores sem os quais, nunca poderemos
conhecer mais profundamente uma pessoa e estabelecer vínculos. No pomar, uma
árvore leva um tempo de maturação para poder frutificar – como, por exemplo, a
mangueira (4 anos), a jaqueira (5 anos), o abacateiro (3 anos), etc. Semelhantemente,
nenhum relacionamento produz frutos de boa qualidade, possui raízes firmes e
robustez suficiente para vencer as momentâneas crises, sem passar pelo crivo do
tempo.
Contudo, o tempo não é tudo na
interação entre duas ou mais pessoas, pois apesar de se verem, se falarem,
apertarem as mãos uns dos outros, ao longo dos anos, não significa exatamente
que essas pessoas se conheçam. Conhecer implica em ir além da superfície, da
casca, das casamatas que construímos para nós ou dos papéis que representamos
no cotidiano.
Conhecer exige busca, cobra
tenacidade e requer paciência. Não é simplesmente identificar pelo design ou pelo rótulo, mas compreende um
constante exercício de observação e comparação de gestos, olhares, sorrisos e
expressões, reconhecendo o particular sentido de cada um, em cada momento. Abrange
um permanente labor de analisar as palavras, mesmo aquelas que não foram ditas
ou ditas de forma solta, ao léu, e atrelá-las àquilo que querem dizer, ainda
que se tornem incompreensíveis a um terceiro interlocutor.
Conhecer é reconhecer, isto é, é
reaprender o outro em cada dia, em cada fase da vida, em cada sentimento.
Poder-se-ia mesmo dizer que é dizer “muito prazer” diariamente. E todo esse
conhecimento é importante para cada um de nós, porque dependemos dele para
sobreviver ao mundo e a nós mesmos.
Sobreviver ao mundo, porque não há
como isolar-se da realidade à volta, pois mesmo que sejamos tomados de
insanidade e fantasiemos sobre tudo, vivendo como os loucos, não deixamos de
nos relacionar. Assim, loucos ou sãos, continuamos a nos relacionar.
Sobreviver a nós mesmos, porque, inúmeras
vezes somos implacáveis e cruéis em nossos julgamentos, egocêntricos ao
referirmo-nos a nós mesmos como um padrão aferidor de sentimentos e atitudes,
tremendamente, autodestrutivos, mergulhando nas regiões abissais de nosso ser, em
busca de respostas às nossas inquietações, ante ao sucesso de outros ao
enfrentarem a vida, ou ainda pela baixa estima que alimentamos em nosso interior.
Quando compreendemos que o
conhecimento do outro, ao misturar-se com a perspectiva de sermos surpreendidos
com algo inusitado, verdadeiramente novo, funciona como um poderoso elemento da
fórmula do amor, passamos a perceber o real valor do tempo na consolidação de
nossas construções afetivas e como a efemeridade e superficialidade dos
encontros e das conversas cotidianas são nocivas à saúde individual,
especialmente, no que diz respeito aos aspectos emocionais e psicológicos de
nossa existência. Existem algumas provas desse bem-estar proveniente dessa
compreensão.
Um primeiro exemplo, é aquele
composto por casamentos nos quais o diálogo e os projetos coletivos, não
esmagam a individualidade e os planos individuais, proporcionando aos cônjuges
ferramentas excepcionais para vencerem o tédio, o esfriamento da relação e a
consequente, insatisfação, ingredientes que produzem infelicidade e que podem
conduzir à infidelidade.
O segundo exemplo repousa na vida
familiar onde pais e filhos, pelo mútuo interesse e alegria em se conhecer,
constroem vínculos onde o desejo de satisfazer às expectativas do outro, não
eliminam nossas próprias expectativas, ao mesmo tempo que o exemplo, a sinceridade,
o carinho e o compartilhar tecem os fios da confiança no outro, afastando
dúvidas, inseguranças e ciúmes.
O terceiro exemplo reflete-se na
comunhão que deve estar presente na vida das comunidades eclesiásticas, não pela
norma religiosa em si, contudo pela compreensão do real sentido do termo e da
essência do amor divino, que se reproduz no espírito humano, a partir de uma
experiência real com o Eterno. Essa
experiência permite que encontremos referências concretas para uma reconstrução
identitária, onde um Outro supremo, supera o ego em sua força dominadora e permite que o eu e o outro se
percebam mutuamente, um no outro. Isto está contido na ideia bíblica de que
somos “imagem e semelhança divina”, ou seja, permite a igualdade ao mesmo tempo
que preserva a individualidade.
Assim, a identificação do outro como
semelhante é o primeiro passo. Porém o desafio da visão cristã é ir além,
considerando o outro como superior o que exige emprenho em se concentrar na
necessidade do outro e na satisfação que pode advir em atender desse cuidado.
Não se trata de se autoanular, contudo, quando cada um alimenta essa troca de
afeto, cuidado e valorização para com o outro, a propensão é de um
relacionamento equilibrado e aprazível para todos.
Conclusão
Essas breves considerações acerca do
consumismo e da ética de mercado estabelecida na contemporaneidade, apontam uma
discussão vital à solidez e durabilidade dos relacionamentos, onde a principal
questão a ser vista, reside na relação entre o eu e o outro.
Isto fomenta uma revisão nos
parâmetros que têm norteado nossas relações com outros indivíduos, por envolver
uma dimensão da vida humana que ultrapassa a mera convivência cotidiana, mas
alcança patamares que refletem na espiritualidade e no exercício do verdadeiro
cristianismo.
Referências
BAUMAN,
Zygmunt. A ética é possível num mundo de
consumidores? Tradução Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
______.
Tempos líquidos. Tradução Carlos
Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
______.
Amor líquido: sobre a fragilidade
dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2004.
______.
O mal-estar da pós-modernidade.
Tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama; revisão técnica Luís Carlos
Fridman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
DOOYEWEERD,
Herman. No crepúsculo do pensamento
ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento. Tradução
Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho e Rodolfo Amorim Carlos de Souza. São
Paulo: Hagnos, 2010.
FREUD,
Sigmund Schlomo. O mal estar na
civilização. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/malestar.html.
Acesso em: 07 set 2012.
GOMES, Carla
Silene Cardoso Lisbôa Bernardo. Lévinas
e o outro: a ética da alteridade como fundamento da justiça. 2008. 90 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2008.
MILL,
John Stuart. O utilitarismo.
Tradução e introdução Alexandre Braga Massela. São Paulo: Iluminuras, 2000.
MORELAND,
J. P. O triângulo do reino:
restabelecendo a mente cristã, renovando a alma, restaurando o poder do
Espírito. Tradução Jurandy Bravo. São Paulo: Editora Vida, 2011.