Na parte 2 de nossa reflexão sobre o fenômeno do desigrejamento das
pessoas no meio cristão evangélico traçamos uma análise sobre a crise de
sentido que aflige a sociedade contemporânea, a qual tem produzido um estado
agônico pela falta de referências e pelos conflitos que provoca. Este cenário,
conforme sugerimos, ao que tudo indica, tem conduzido ao que chamamos de
“leitura conceitual individualizada” das múltiplas vertentes da vida social.
Neste texto, prosseguiremos nossa análise deste processo a partir de
algumas considerações sobre conceito, sua construção e desconstrução na
contemporaneidade, bem como seus reflexos sobre a relação entre o indivíduo e a
igreja.
A (DES)CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS E CRISE ECLESIÁSTICA
NA CONTEMPORANEIDADE
O que seria um conceito?
Dentre outras definições, podemos dizer que conceito consiste em uma
noção ou ideia concebida pela mente, que representa de forma geral e abstrata
uma realidade. Assim, nossa proposição é que, através de um conceito, torna-se
possível o conhecimento sobre determinado ser ou realidade, por meio da
linguagem que, tomando por base referências ou modelos absolutos, empresta-lhe
um sentido. Todavia, é exatamente na questão da linguagem, ou ainda, do
discurso, que reside o problema que estaremos abordando.
Ao proclamar “a morte de Deus”, Nietzsche (2012; p. 137-138) faz
referência ao fim das bases transcendentais da existência, ou seja, Deus como
absoluto que justifica e serve como fonte de valoração para o mundo e para a
vida das pessoas. O filósofo tratava de um acontecimento cultural, onde os
homens deixariam de crer em uma ordenação cósmica transcendental, isto é, há
uma incredulidade no que se refere a valores absolutos. Sua referência ao
“cheiro da putrefação divina” (op. cit; p. 138) volta-se ao relativismo, onde a
negação de qualquer valoração abarcaria a cultura.
Na realidade Nietzsche não se levanta contra Deus, enquanto
possibilidade, todavia, contra o cristianismo enquanto sistema que, em sua base
teísta, mantinha juízos de valor e defendia o domínio da razão sobre os
instintos, bem como, as ideias de verdade e certeza. Como propõe Ricard:
Com a morte de Deus, a terra é de agora em diante mergulhada no niilismo,
isto é, na ausência total de sentido, no
duplo sentido da palavra (...) Em resumo, a morte de Deus significa antes
de mais nada a perda de um absoluto transcendente. Essa perda engendra o
niilismo, ou seja, ao advento de um duplo declínio: o do sentido de nossa vida
e o de nossos valores morais judeu-cristãos. (RICARD, 2009, p. 284)
Desta forma, Nietzsche, Sartre, Derrida, Foucault e outros pensadores
foram formatando um tempo no qual, pela ausência de uma mente absoluta, não há
verdade absoluta (relativismo epistemológico), não há significado absoluto
(relativismo semântico) e não há história absoluta (reconstrucionismo)
(GEISLER, 2012). E, neste sentido, Moreland afirma que:
Como posição filosófica, o pós modernismo é basicamente a reinterpretação
do que é conhecimento e do que conta como conhecimento. Em termos mais gerais,
representa uma forma de relativismo cultural sobre outras coisas, como a
realidade, a verdade, a razão, o valor, o significado, o ego e outras noções.
Na visão pós-moderna, não há coisas como realidade objetiva, verdade valor,
razão e assim por diante. (MORELAND, 2013, p. 118)
Reforçando as proposições de Moreland, Geisler (op. cit.) observa que na
passagem do modernismo para o pós-modernismo:
A mudança geral é da epistemologia para a hermenêutica; da verdade
absoluta para a verdade relativa; da busca pela descoberta do sentido do autor
para o sentido do leitor; da estrutura de um texto para a destruição do texto;
do propósito de conhecer a verdade para a jornada do conhecimento. (GEISLER, op.
cit., p. 106)
Nesse sentido, há, portanto,
a negação do fundacionalismo, “teoria predominante na justificação espistêmica
na maior parte da história da filosofia ocidental” (MORELAND e CRAIG, 2005, p.
145) e que, segundo Geisler, “é a visão que prega que há princípios
fundamentais autoevidentes que formam a base de todo conhecimento” (GEISLER,
op. cit. p. 109).
Ora, de tudo o que temos analisado até o presente, podemos entender que, alguns
dos conceitos fundamentais que estruturam nosso cotidiano e que influem na
formação de nossa identidade (conceitos estes que estariam fundados sobre
princípios emanantes de uma Verdade Absoluta), estão passíveis – e sofrem – um
processo de permanente mudança ou reinterpretação. Tomando carona no pensamento
de Zygmunt Bauman, estamos vivendo a chamada “vida líquida” dentro de uma
sociedade líquido-moderna. Segundo Bauman (2007):
Líquido-moderna
é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num
tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e
rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e
se revigoram mutuamente [e ambas não podem] manter a forma ou permanecer em seu
curso por muito tempo. (inserção nossa) (BAUMAN, 2007, p. 7)
Esta é uma sociedade marcada
por valores voláteis, hedonista, instável e tolerante à desconstrução, pois ela
se reconstrói em meio a sua própria desordem. Logo, arriscamos em dizer que
essa é a era do homo mutantis, onde a
tendência é que não sejamos mais uma entidade ontológica única, porém, um
produto do “mercado social”, como uma unidade resultante de um processo de
produção em série. Isso parece-nos lógico, face à negação dos absolutos que nos
forneçam amarras.
A “liquidez” contemporânea tem
provocado uma forte crise existencial, que dentre outras consequências, implica
no surgimento de uma crescente diversidade de conceitos e, concomitantemente,
de igrejas ditas evangélicas, cada qual com sua própria intepretação bíblica,
visando atender a interesses humanos específicos.
Se Deus está morto, como propôs
Nietzsche, e vivemos uma liberdade radical que nos faz experimentar angústia,
segundo Sartre (2007), haveria um sentido absoluto no texto bíblico proposto
por seu Autor? O que nos parece patente, então, é que cada um constrói seus
próprios sentidos e, daí, seus conceitos. Vanhoozer (2010) esclarece que:
O autor, como
aquele que origina e garante a autenticidade, também comanda e controla o
significado. Autoria implica propriedade. A ascensão da autoria e a ascensão do
capitalismo no mundo moderno não são uma coincidência, pois ambos se baseiam no
conceito de propriedade privada. O paralelo entre Deus e o autor volta a ser
instrutivo. “Do SENHOR é a terra e tudo o que nela existe” (Sl 24.1). Deus é o
Autor da existência, do livro da natureza. O significado do mundo foi escrito
pela mão do Criador. É Deus quem origina o mundo, quem o sustenta e quem
preserva as distinções que lhe dão seu significado. Deus é o Autor dos autores,
a Autoridade por trás de todas as autoridades. Além disso, a vontade de Deus
não é uma força indefinida, mas algo definido. De maneira semelhante, ainda que
em menor medida, a vontade do autor impõe-se sobre a linguagem e a literatura.
(VANHOOZER, 2010, p. 53)
E Vanhoozer acrescenta que:
É precisamente
pelo fato de terem autores que os textos não significam qualquer coisa. A
vontade do autor atua como um controle sobre a interpretação. Graças ao fato de
um autor desejar isto, não aquilo, podemos dizer que existe um
significado definido nos textos anterior à leitura e à interpretação. Assim
como a vontade de Deus estrutura o Universo, a vontade do autor estrutura o
universo do discurso. O autor é, assim, a base do “ser” do significado. (VANHOOZER,
loc. cit)
Todavia, Jacques Derrida,
filósofo francês que criou, a partir de trabalhos publicados nos anos 60, o
conceito de Desconstrucionismo, um método crítico do texto, onde despreza-se a
identidade e as intenções do autor em sua interpretação. Assim, o
desconstrucionimso fomentou aquilo que se pode chamar de “hermenêutica da
suspeição”, na qual a verdade absoluta nele contida é desconsiderada, a partir
do entendimento que cada texto é uma criação política capaz de promover
preconceitos como racismo, homofobia, sexismo, entre outros. Desta forma, o
desconstrucionismo despe as palavras de um significado objetivo e empresta-lhes
uma interpretação subjetiva, ou seja, segundo o entendimento do leitor.
Portanto, na proposição de Derrida,
todas as interpretações que se pode dar ao texto são válidas ou de forma
similar, destituídas de sentido, segundo a visão de quem o analisa. Neste
sentido, observando que a linguagem é uma criação da cultura e que é através
dela que expressamos nosso pensamento, as palavras de um determinado texto
passariam a ter seu significado atrelado ao sistema cultural do leitor, o que
claramente impede atribuir a quem quer que seja, um caráter absoluto de verdade
na interpretação textual. Como observa Vanhoozer:
O que Derrida
nega é que haja qualquer presença, qualquer tipo de ser ou de realidade
determinada fora do jogo dos signos. Não existe uma base original ou “lar” do
significado, nada além dos sistemas de linguagem contingentes e particulares,
e, portanto, nada para manter o significado concentrado, estável e determinado.
(...) O autor é um construto metafísico, uma figura ligada ao logocentrismo da
teologia e da filosofia ocidentais por meio das metáforas da ”voz” e da
“presença” (...) Por uma estranha mudança no destino, a teoria literária
contemporânea vê o autor como um efeito do texto, não como sua causa. A noção
logocêntrica de um princípio estável do significado foi denunciada como uma
pretensão metafísica. No entanto, a noção do autor como senhor do significado
textual era mais do que um erro metafísico. Alguns críticos sustentam a noção
de que o autor é um construto ideológico repressivo que desempenha uma função política.
Para esses críticos, o autor precisa morrer se quisermos que o texto viva e que
o leitor seja libertado [ou, como vimos] (...) a morte do autor torna-se uma
medida necessária na recusa a atribuir um significado “real” ao texto.
(inserção nossa) (VANHOOZER, op. cit., passim)
Ao aplicarmos essas considerações às
Escrituras Sagradas, podemos perceber que a morte do Autor proporciona como
consequência, a ideia de destituição do caráter absoluto e universal do texto
bíblico, o que leva à permissividade hermenêutica, ou seja, à diversidade de
interpretações da Palavra de Deus, onde cada um empresta ao texto o significado
que sua formação cultural lhe permitir, que desejar ou lhe for mais
conveniente. Logo, desconsidera-se o sentido que Deus, como Autor e fonte
inspiradora da Bíblia, quis dar às suas palavras. Seria a rejeição do Logos
divino, pelo logos humano?
Essas reflexões nos levam a
compreender a crise na construção de conceitos, e, mais especificamente, nos
conceitos de "moral" e “igreja”, o que contribui para o caos teológico que se apresenta atualmente
na sociedade, com pessoas elaborando, cada qual um conceito ou modelo eclesiástico,
isto é, segundo suas concepções individuais e seu entendimento da Palavra. E
isso se confirma, através das “revelações”, das proclamações de uma “nova
unção”, de apostolados e tantas outras inovações que surgem, em especial, no
contexto do neo-pentecostalismo. Além disso, o viés interpretativo pós-moderno
tem conduzido ao surgimento de “igrejas” que visam atender grupos específicos,
muitos dos quais, em suas convicções e opções pessoais, contrariam frontalmente
aquilo que está consignado na Bíblia.
Diante desse pluralismo
teológico-evangélico onde, muitas vezes, posições doutrinárias mais ortodoxas e
consistentes são esquecidas ou abandonadas em favor de um “evangelho de
momento”, superficial, desprovido de seu sentido original, onde Deus é apenas
um figurante dentro de um cenário religioso tomado de humanismo. Assim, muitos
que vão às igrejas em busca de respostas à crise que aflige o mundo ficam á
mingua, entregues a um mar de dúvidas, quando não são feridos, espoliados e até
mortos espiritualmente, por líderes despreparados e inconsequentes. Em outras
ocasiões, cristãos que já possuem certo tempo nos caminhos do Evangelho, ficam
tão aturdidos ou escandalizados com aquilo que veem em certos nichos
evangélicos que ficam perdidos em sua identidade cristã e acabem por se afastar
da igreja.
Na próxima postagem, portanto,
passaremos à análise do segundo ponto de nossa reflexão sobre os desigrejados,
a crise da espiritualidade nas igrejas contemporâneas.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2007.
GEISLER, Norman L. Uma
resposta ao desconstrucionismo filosófico. In: SANTANA, Uziel (org.) et al. Apostasia, nova ordem mundial e governança
global: uma compreensão cristã do fim dos tempos. Campina Grande, PB: Visão
Cristocêntrica Publicações, 2012. p. 103-119.
MORELAND, James P.; CRAIG, William Craig. Filosofia e cosmovisão crista. Tradução Emirson Justino, Hander Heim, Lena
Aranha, Rogério Portella e Sueli da Silva Saraiva. São Paulo: Vida Nova, 2005.
NIETZSCHE,
Friedrich Wilhelm. A gaia ciência.
Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
RICARD, Marie-Andrée. A
morte de Deus e a nova destinação do homem segundo Nietzsche. In: LANGLOIS,
Luc; ZARKA, Yves Charles (orgs.). Os filósofos
e a questão de Deus. Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2009.
p. 275-291.
VANHOOZER, Kevin J. Há um significado neste texto? Interpretação
bíblica: os enfoques contemporâneos. Tradução Álvaro Hattnher.1. reimp. São
Paulo: Editora Vida, 2010.
Figura extraída
de http://alexandresombrio.blogspot.com.br/2010/11/serie-pos-modernidade-parte-4.html