terça-feira, 10 de dezembro de 2013

DESIGREJADOS: POR QUE? (PARTE 2)



A CRISE DE SENTIDO NA CONTEMPORANEIDADE


Na primeira postagem que fizemos dentro da proposição de refletir o crescente fenômeno do desigrejamento na atualidade, observando especialmente as comunidades cristãs evangélicas, elencamos dois fatores como fundamentais no processo de seu desenvolvimento: o movimento contemporâneo de construção e, sobretudo, de desconstrução de conceitos considerados essenciais à formação identitária e a qualidade da espiritualidade e do Evangelho vivenciado por muitas igrejas. Assim, iniciaremos nossa análise desses elementos nessa segunda postagem, a partir de uma breve análise filosófico-sociológica da crise de  sentido na contemporaneidade

É perceptível pelos fenômenos e movimentos sociais na atualidade, a ocorrência de uma crise dos princípios éticos, em especial nas culturas ocidentais. Essa “crise” – ou mutação – ética reflete-se na própria construção de conceitos que constituem um lastro identitário para o ser humano como, por exemplo, família, escola (educação formal), trabalho, Estado e igreja (religião). Além disso, pode-se constatar uma fragmentação nas paisagens culturais de classe, sexualidade, etnia, gênero, raça e nacionalidade que, segundo Hall, “no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais (2001, p. 9), contribuindo para uma mudança nas identidades pessoais e na teia de relações de convivialidade cotidiana.

Segundo Cabral (2008, p.1)a toda a hora e de múltiplas formas diz-se que vigora, na cultura hoje vigente, uma crise dos valores outrora instituídos como norte do agir humano” e neste sentido, parece-nos que o cerne da questão ética repousa não sobre as mudanças conceituais ou nos fatos em si mesmos, contudo compreendemos como um confronto axiológico e teleológico, que acompanha o pós-moderno ou, ainda, a “modernidade líquida” de Bauman (2001, 2007a, 2007b). Assim, tomando elementos contidos no texto da obra de Sófocles, “Antígona”, procuraremos traçar breves considerações sobre aquilo que chamamos “crise axiológica da pós-modernidade” ou ainda, “crise ética contemporânea”.



UM NOTÁVEL PARALELISMO



            Antígona foi escrita e encenada originalmente, na segunda metade do século V, um período de mudanças e acontecimentos históricos relevantes para os povos gregos, particularmente, para os atenienses. Pode-se dizer que foi o século da modernidade grega, com a implantação e a consolidação da experiência democrática, a qual trouxe a reboque o conflito de ideias sobre moral, religião e tradição. De acordo com Di Matteo (2008, p. 3), “a democracia descentrou o poder, o saber e a verdade ancoradas outrora na tradição e na religião e os entregou nas mãos de cidadãos irrequietos e ousados”.

        O movimento sofista colaborou com a progressiva secularização dos usos e costumes. Com sua visão relativa de mundo – expressa na máxima de Protágoras que afirmou que “o homem é a medida de todas as coisas” – os sofistas apontavam para a idéia de que o homem deveria seguir unicamente padrões impostos pelo próprio ser humano, isto é, o homem deve moldar-se por sua liberdade, logo, o bem é o que satisfaz ao sentimento, ao impulso, à paixão de cada homem. Assim, o único bem é o prazer (hedonismo) e a regra de conduta é o interesse particular (utilitarismo ético).

         Quando mergulhamos no contexto do século XX, percebemos que as similaridades com o período histórico da Grécia Antiga, descrito nos parágrafos anteriores são consideráveis. Como no século V, na Grécia, o século XX principia com duas guerras mundiais que, pela intensidade da destruição e dos flagelos que impuseram à humanidade, entre outros fatores, levaram à “incredulidade perante o metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes” (BARBOSA, 2008, p. vii). Assim, essa “incredulidade”, que se intensifica a partir dos anos 1950, com o início da chamada “era pós- industrial”, passa a caracterizar a pós-modernidade, atingindo de forma questionadora e direta postulados da fé judaico-cristã e, até mesmo, da própria ciência.

A evolução dos processos culturais, sociais, políticos e econômicos, decorrentes desse período, promoveram significativas mudanças no cenário mundial, fomentando as condições para que, a partir do final dos anos 1980, ocorresse o terceiro período histórico da globalização, denominado “globalização recente”, no qual intensifica-se o enfraquecimento dos elementos referenciais das religiões tradicionais e das ideologias mais expressivas, que outrora formavam um conjunto ético-moral e sócio-político que regia a vida dos indivíduos e povos. Como afirma Maclaren, “a pós-modernidade pode ser descrita como uma época de courpore cultural e epistemológica, uma época na qual as fronteiras culturais e epistemológicas estão se desfazendo e os gêneros disciplinares se tornando indistintos” (1993, p.15).

Desta forma, em nosso entendimento, há uma espécie de niilismo revisitado, no qual verifica-se a desvalorização e a morte do sentido, uma ausência de finalidade e respostas ao “porquê”, criando-se um vazio existencial, pelo esgarçamento de princípios e pela dissolução de princípios e critérios considerados absolutos. Assim, em muitos segmentos da reflexão contemporânea passou-se a reproduzir o pensamento de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiésvski, de que se Deus (de onde viria toda a verdade e que é o princípio de tudo) está morto (como afirmou Nietzsche), logo tudo é permitido. Ora, se tudo é permitido, não há nexo algum na existência de mecanismos de controle, ou de instituições que proponham e defendam princípios absolutos, nos quais se estabeleça de forma clara a contraposição entre “certo” e “errado”. Então passamos a ter a concepção de que “todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto”. Mas, que ponto? Para onde estamos indo se não existe o Absoluto, se não existem referências permanentes e todas as certezas futuras desvaneceram-se?

Assim, estabelece-se uma ética mutante, fugaz, que se espelha na efemeridade dos princípios, conceitos e postulados sociais e passamos a viver um conceito enganoso de liberdade, o qual funciona muito mais como uma prisão, onde as pessoas são reclusas em uma existência desprovida de sentido e propósitos.



SER OU NÃO SER: EIS O CONFLITO



      Como visto no tópico anterior, a pós-modernidade trouxe consigo, já em seu nascedouro interrogações perturbadoras, que remetem à essência do homem e seu convívio em sociedade, uma certa reedição do questionamento shakespeariano de Hamlet, “ser ou não ser”. Aliás, esse é um conflito marcante na obra de Shakespeare onde, apesar da inicial pureza de princípios éticos de seus heróis, estes entregam-se ao desregramento de paixões incontidas, isto é, o idealismo moral confronta-se com uma insurreição interior, na qual a vontade individual sobrepõe a moral (uma reprodução ou reflexo do conflito Bem vs. Mal, Amor vs. Ódio, Justo vs. Injusto, etc). Como o herói shakespeariano cede à paixão (ou seria melhor dizer a si mesmo?) e consciente do mal praticado, vê na morte a saída para o conflito que já não pode gerir. E neste sentido, cremos que existem duas possibilidades para tentar explicar esse conflito. A primeira reside na incerteza de como seria a existência se sua escolha fosse outra, se o caminho percorrido fosse o outro; a segunda, a certeza de que não há como retroceder o tempo, fazer voltar atrás a existência para mudar os fatos, sabendo que suas consequências estarão sempre escrevendo os novos capítulos da história. Por outro lado, a própria morte traz em si um conflito, pela incerteza daquilo que lhe sucede. E estas considerações espelham-se no texto do próprio Shakespeare, nas palavras do príncipe Hamlet:



 Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos e setas de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades para pôr lhes fim, resistindo? Morrer... Dormir; nada mais! E com o sono, dizem terminamos o pesar do coração e os inúmeros naturais conflitos que constituem a herança de carne! Que fim poderia ser mais devotamente desejado? Morrer... Dormir!... Talvez sonhar! Sim, eis a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. Aí está a reflexão que dá a desventura de uma vida assim tão longa! [...] Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, em vez e nos lançarmos a outros que desconhecemos? (SHAKESPEARE, 2007, p. 56-57)





            De acordo com Fonseca (2008):



De fato, o príncipe da Dinamarca é um personagem controverso e fascinante. Muitos o consideram como a personificação da dúvida, da hesitação e da inação [...] Provavelmente, a melhor análise que pode ser feita sobre o príncipe Hamlet é a sua identificação como homem da Renascença, aquele que após o longo período de certezas calcado na fé absoluta no transcendente da Idade Média, despertou em um mundo em ebulição e ousou perguntar-se: ser ou não ser? (FONSECA, 2008, s.p.)





            Diante dessas questões, acreditamos que a palavra chave seria conflito. Conflito que está presente nas páginas da Antígona de Sófocles em uma série de oposições: legitimidade x legalidade, vida x morte gloriosa, obediência x dever, indivíduo x comunidade, transcendência x imanência, humano x divino, etc.  Conflito que conduz ao desespero, a um estado agônico, presente na contemporaneidade, diante da indefinição ética. Real ou virtual, local ou global, branco ou preto, pobre ou rico, oriente ou ocidente, ser ou não ser, são questões que, não raro, geram, espelham-se e falam através de fenômenos sociais. Para satisfazer esse conflito, parece-nos que o mecanismo adotado seria algo do tipo “leitura conceitual individualizada” onde cada um constrói seus próprios conceitos, conforme a conveniência do momento ou, na falta de uma reflexão mais aprofundada, segundo, o pensamento da maioria. E isto inclui a fé.

       Na próxima postagem, estaremos comentando acerca dessa construção (e desconstrução) de conceitos, a questão identitária e seus reflexos no fenômeno do desigrejamento.



REFERÊNCIAS




BARBOSA, Wilmar do Valle. Tempos pós-modernos. In: LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução Ricardo Corrêa Barbosa; posfácio Silviano Santiago. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. vii-xiii.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Augusto de Souza Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
______. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007a.
______. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007b.
CABRAL, Alexandre Marques. Sobre a superação da crise ética contemporânea. Disponível na Internet: http://www.achegas.net/numero/dezoito/a_cabral_18.htm. Acesso em: 05 mai 2008.
DI MATTEO, Vicenzo. Antígona e a problemática ética contemporânea. Disponível em: www.propesq.ufpe.br/hp/filosofia/arquivos/Antigona%20e%20a%20problematica%20etica%20contemporanea.pdf. Acesso em: 06 nov 2008.
DOSTOIÉVSKY, Fiodor. Os irmãos Karamazov. Tradução Herculano Villas-Boas. São Paulo: Martin Claret, 2013.
FONSECA, Deize. Uma leitura heideggeriana da linguagem em Hamlet. Disponível em: http://www..ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa4/9.doc. Acesso em: 07 mai, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
SHAKESPEARE, William. HAMLET. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007. (Coleção A Obra-Prima de Cada Autor).
SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Millôr Fernandes. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
 

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