Na primeira postagem que fizemos dentro da proposição
de refletir o crescente fenômeno do desigrejamento na atualidade, observando
especialmente as comunidades cristãs evangélicas, elencamos dois fatores como
fundamentais no processo de seu desenvolvimento: o movimento contemporâneo de
construção e, sobretudo, de desconstrução de conceitos considerados essenciais
à formação identitária e a qualidade da espiritualidade e do Evangelho
vivenciado por muitas igrejas. Assim, iniciaremos nossa análise desses elementos nessa segunda
postagem, a partir de uma breve análise filosófico-sociológica da crise de sentido na contemporaneidade
É perceptível pelos fenômenos e movimentos
sociais na atualidade, a ocorrência de uma crise dos princípios éticos, em
especial nas culturas ocidentais. Essa “crise” – ou mutação – ética reflete-se
na própria construção de conceitos que constituem um lastro identitário para o
ser humano como, por exemplo, família, escola (educação formal), trabalho,
Estado e igreja (religião). Além disso, pode-se constatar uma fragmentação nas
paisagens culturais de classe, sexualidade, etnia, gênero, raça e nacionalidade
que, segundo Hall, “no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como
indivíduos sociais (2001, p. 9), contribuindo para uma mudança nas identidades
pessoais e na teia de relações de convivialidade cotidiana.
Segundo Cabral (2008, p.1) “a
toda a hora e de múltiplas formas diz-se que vigora, na cultura hoje vigente,
uma crise dos valores outrora instituídos como norte do agir humano” e neste
sentido, parece-nos que o cerne da questão ética repousa não sobre as mudanças
conceituais ou nos fatos em si mesmos, contudo compreendemos como um confronto
axiológico e teleológico, que acompanha o pós-moderno ou, ainda, a “modernidade
líquida” de Bauman (2001, 2007a, 2007b). Assim, tomando elementos contidos no
texto da obra de Sófocles, “Antígona”, procuraremos traçar breves considerações
sobre aquilo que chamamos “crise axiológica da pós-modernidade” ou ainda,
“crise ética contemporânea”.
UM
NOTÁVEL PARALELISMO
Antígona foi escrita e encenada
originalmente, na segunda metade do século V, um período de mudanças e
acontecimentos históricos relevantes para os povos gregos, particularmente,
para os atenienses. Pode-se dizer que foi o século da modernidade grega, com a
implantação e a consolidação da experiência democrática, a qual trouxe a
reboque o conflito de ideias sobre moral, religião e tradição. De acordo com Di
Matteo (2008, p. 3), “a democracia descentrou o poder, o saber e a verdade
ancoradas outrora na tradição e na religião e os entregou nas mãos de cidadãos
irrequietos e ousados”.
O movimento sofista colaborou com a
progressiva secularização dos usos e costumes. Com sua visão relativa de mundo
– expressa na máxima de Protágoras que afirmou que “o homem é a medida de todas
as coisas” – os sofistas apontavam para a idéia de que o homem deveria seguir unicamente
padrões impostos pelo próprio ser humano, isto é, o homem deve moldar-se por
sua liberdade, logo, o bem é o que satisfaz ao sentimento, ao impulso, à paixão
de cada homem. Assim, o único bem é o prazer (hedonismo) e a regra de conduta é
o interesse particular (utilitarismo ético).
Quando mergulhamos no contexto do
século XX, percebemos que as similaridades com o período histórico da Grécia
Antiga, descrito nos parágrafos anteriores são consideráveis. Como no século V,
na Grécia, o século XX principia com duas guerras mundiais que, pela
intensidade da destruição e dos flagelos que impuseram à humanidade, entre
outros fatores, levaram à “incredulidade perante o metadiscurso
filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes”
(BARBOSA, 2008, p. vii). Assim, essa “incredulidade”, que se intensifica a
partir dos anos 1950, com o início da chamada “era pós- industrial”, passa a
caracterizar a pós-modernidade, atingindo de forma questionadora e direta
postulados da fé judaico-cristã e, até mesmo, da própria ciência.
A
evolução dos processos culturais, sociais, políticos e econômicos, decorrentes desse
período, promoveram significativas mudanças no cenário mundial, fomentando as
condições para que, a partir do final dos anos 1980, ocorresse o terceiro período
histórico da globalização, denominado “globalização recente”, no qual
intensifica-se o enfraquecimento dos elementos referenciais das religiões
tradicionais e das ideologias mais expressivas, que outrora formavam um
conjunto ético-moral e sócio-político que regia a vida dos indivíduos e povos. Como
afirma Maclaren, “a pós-modernidade pode ser descrita como uma época de courpore cultural e epistemológica, uma
época na qual as fronteiras culturais e epistemológicas estão se desfazendo e
os gêneros disciplinares se tornando indistintos” (1993, p.15).
Desta
forma, em nosso entendimento, há uma espécie de niilismo revisitado, no qual
verifica-se a desvalorização e a morte do sentido, uma ausência de finalidade e
respostas ao “porquê”, criando-se um vazio existencial, pelo esgarçamento de
princípios e pela dissolução de princípios e critérios considerados absolutos. Assim,
em muitos segmentos da reflexão contemporânea passou-se a reproduzir o
pensamento de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiésvski, de que se Deus (de
onde viria toda a verdade e que é o princípio de tudo) está morto (como afirmou
Nietzsche), logo tudo é permitido. Ora, se tudo é permitido, não há nexo algum
na existência de mecanismos de controle, ou de instituições que proponham e
defendam princípios absolutos, nos quais se estabeleça de forma clara a contraposição
entre “certo” e “errado”. Então passamos a ter a concepção de que “todos os
caminhos conduzem ao mesmo ponto”. Mas, que ponto? Para onde estamos indo se
não existe o Absoluto, se não existem referências permanentes e todas as
certezas futuras desvaneceram-se?
Assim,
estabelece-se uma ética mutante, fugaz, que se espelha na efemeridade dos
princípios, conceitos e postulados sociais e passamos a viver um conceito
enganoso de liberdade, o qual funciona muito mais como uma prisão, onde as
pessoas são reclusas em uma existência desprovida de sentido e propósitos.
SER
OU NÃO SER: EIS O CONFLITO
Como visto no tópico anterior, a
pós-modernidade trouxe consigo, já em seu nascedouro interrogações
perturbadoras, que remetem à essência do homem e seu convívio em sociedade, uma
certa reedição do questionamento shakespeariano de Hamlet, “ser ou não ser”.
Aliás, esse é um conflito marcante na obra de Shakespeare onde, apesar da
inicial pureza de princípios éticos de seus heróis, estes entregam-se ao
desregramento de paixões incontidas, isto é, o idealismo moral confronta-se com
uma insurreição interior, na qual a vontade individual sobrepõe a moral (uma
reprodução ou reflexo do conflito Bem vs. Mal, Amor vs. Ódio, Justo vs.
Injusto, etc). Como o herói shakespeariano cede à paixão (ou seria melhor dizer
a si mesmo?) e consciente do mal praticado, vê na morte a saída para o conflito
que já não pode gerir. E neste sentido, cremos que existem duas possibilidades
para tentar explicar esse conflito. A primeira reside na incerteza de como
seria a existência se sua escolha fosse outra, se o caminho percorrido fosse o
outro; a segunda, a certeza de que não há como retroceder o tempo, fazer voltar
atrás a existência para mudar os fatos, sabendo que suas consequências estarão
sempre escrevendo os novos capítulos da história. Por outro lado, a própria morte
traz em si um conflito, pela incerteza daquilo que lhe sucede. E estas
considerações espelham-se no texto do próprio Shakespeare, nas palavras do
príncipe Hamlet:
Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais
nobre para a alma: sofrer os dardos e setas de um destino cruel, ou pegar em
armas contra um mar de calamidades para pôr lhes fim, resistindo? Morrer...
Dormir; nada mais! E com o sono, dizem terminamos o pesar do coração e os
inúmeros naturais conflitos que constituem a herança de carne! Que fim poderia
ser mais devotamente desejado? Morrer... Dormir!... Talvez sonhar! Sim, eis a
dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam
sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho
da vida. Aí está a reflexão que dá a desventura de uma vida assim tão longa!
[...] Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso
de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte,
região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa
vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, em vez e
nos lançarmos a outros que desconhecemos? (SHAKESPEARE, 2007, p. 56-57)
De acordo com Fonseca (2008):
De fato, o príncipe da Dinamarca é um personagem controverso e
fascinante. Muitos o consideram como a personificação da dúvida, da hesitação e
da inação [...] Provavelmente, a melhor análise que pode ser feita sobre o
príncipe Hamlet é a sua identificação como homem da Renascença, aquele que após
o longo período de certezas calcado na fé absoluta no transcendente da Idade
Média, despertou em um mundo em ebulição e ousou perguntar-se: ser ou não ser?
(FONSECA, 2008, s.p.)
Diante
dessas questões, acreditamos que a palavra chave seria conflito. Conflito que
está presente nas páginas da Antígona de Sófocles em uma série de oposições:
legitimidade x legalidade, vida x morte gloriosa, obediência x dever, indivíduo
x comunidade, transcendência x imanência, humano x divino, etc. Conflito que conduz ao desespero, a um estado
agônico, presente na contemporaneidade, diante da indefinição ética. Real ou
virtual, local ou global, branco ou preto, pobre ou rico, oriente ou ocidente,
ser ou não ser, são questões que, não raro, geram, espelham-se e falam através
de fenômenos sociais. Para satisfazer esse conflito, parece-nos que o mecanismo
adotado seria algo do tipo “leitura conceitual individualizada” onde cada um
constrói seus próprios conceitos, conforme a conveniência do momento ou, na
falta de uma reflexão mais aprofundada, segundo, o pensamento da maioria. E
isto inclui a fé.
Na próxima postagem, estaremos
comentando acerca dessa construção (e desconstrução) de conceitos, a questão
identitária e seus reflexos no fenômeno do desigrejamento.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Wilmar do Valle. Tempos
pós-modernos. In: LYOTARD, Jean-François. A
condição pós-moderna. Tradução Ricardo Corrêa Barbosa; posfácio Silviano
Santiago. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. vii-xiii.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Augusto de Souza Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
______. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007a.
______. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007b.
CABRAL, Alexandre Marques. Sobre a superação da crise ética contemporânea. Disponível na Internet: http://www.achegas.net/numero/dezoito/a_cabral_18.htm. Acesso em: 05 mai 2008.
DI MATTEO, Vicenzo. Antígona e a problemática ética contemporânea. Disponível em: www.propesq.ufpe.br/hp/filosofia/arquivos/Antigona%20e%20a%20problematica%20etica%20contemporanea.pdf. Acesso em: 06 nov 2008.
DOSTOIÉVSKY, Fiodor. Os irmãos Karamazov. Tradução Herculano Villas-Boas. São Paulo: Martin Claret, 2013.
FONSECA, Deize. Uma leitura heideggeriana da linguagem em Hamlet. Disponível em: http://www..ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa4/9.doc. Acesso em: 07 mai, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
SHAKESPEARE, William. HAMLET. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007. (Coleção A Obra-Prima de Cada Autor).
SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Millôr Fernandes. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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