Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16.18)
A expressão “edificarei a minha igreja” nas palavras de Jesus, apontam
para um dos projetos mais espetaculares de Deus e um dos efeitos mais poderosos
da graça divina: o estabelecimento de uma instituição que, ao longo dos séculos
incorporou e incorpora a tarefa de ser a legítima representante do reino
celeste na terra.
Agregar dentro de um mesmo espaço espiritual um conjunto tão
diversificado de pensamentos e caracteres individuais, só poderia ser obra
daquele que, sendo eterno, onipotente, onisciente e onipresente, idealizou e
tornou real o universo em todas as suas dimensões. E é seguindo esse viés da
multiplicidade de formas e caracteres dos indivíduos, que buscamos refletir
acerca de alguns elementos fundamentais no conceito de igreja, os quais podem nos
ajudar a responder, ou melhor, optar por uma das entidades que compõem o título
desse texto.
Essa entidade mística anunciada por Jesus como um edifício construído
sobre o alicerce da verdade, sendo ele próprio a verdade (Jo 14.6), a “pedra de
esquina” (Ef 2.20), nasceu sob a manifestação do poder divino no dia de
Pentecostes e cresceu sob o fogo da perseguição, como uma semente que germinou
regada pelo sangue dos mártires. A ela foi entregue a responsabilidade de
anunciar o Evangelho do Reino, apresentar ao mundo a salvação em Cristo e
preparar aqueles que cressem para uma eternidade com Deus.
Entendemos a Igreja como a comunidade universal de todos os que atenderam
ao chamado do Espírito Santo e reconheceram a Jesus Cristo como seu legítimo Senhor
e Salvador. Aqueles que se submetem aos princípios contidos nas Escrituras,
buscam viver em amor, santidade e temor e adoram a Deus em espírito e em
verdade, na plenitude do seu ser. Isso nos conduz à necessidade de refletir se
somos realmente Igreja, isto é, se gozamos dessas características e temos parte
no rebanho divino, ou se estamos enganados, perdidos como membros de uma
denominação, sem possuirmos uma consciência cristã verdadeira e, por
conseguinte, fora do aprisco, à margem do caminho.
Vale aqui uma ressalva de que não estamos falando em julgamento de
pessoas, em aferição do nível de santidade ou de espiritualidade de quem quer
que seja. A Bíblia não nos confere esta autoridade, antes nos adverte que com o
juízo que que julgarmos, seremos julgados e com a medida que medirmos seremos
medidos (Mt 7.2). Queremos apenas ressaltar a importância de atentarmos para a
separação entre a Igreja do Senhor, a Noiva do Cordeiro, através da qual o
nosso Deus é glorificado, e a igreja institucional, terrena, de caráter humano,
com suas especificidades culturais, legais e doutrinárias. Estes são dois
conceitos interdependentes, que, entretanto, não podem ser confundidos.
São interdependentes porque a igreja local, através de sua pregação,
suas ações e pelo fruto produzido por seus membros, deve espelhar para o mundo
de forma concreta, aquilo que a Igreja universal do Senhor Jesus representa
espiritualmente. Contudo, o fato de alguém ser membro, batizado em águas,
possuir qualquer cargo ou função ministerial, integrar um grupo, no cerne de
uma comunidade evangélica qualquer, não representa, como dissemos, que aquela
pessoa seja Igreja. E é fácil compreendermos essa diferença se pararmos para
meditar no texto de Lucas 13.24-27.Porfiai por entrar pela porta estreita; porque eu vos digo que muitos procurarão entrar, e não poderão. Quando o pai de família se levantar e cerrar a porta, e começardes, de fora, a bater à porta, dizendo: Senhor, Senhor, abre-nos; e, respondendo ele, vos disser: Não sei de onde vós sois; Então começareis a dizer: Temos comido e bebido na tua presença, e tu tens ensinado nas nossas ruas. E ele vos responderá: Digo-vos que não vos conheço nem sei de onde vós sois; apartai-vos de mim, vós todos os que praticais a iniquidade.
Há duas expressões neste texto bíblico que nos chamam a atenção. A
primeira consiste na recomendação “porfiai por entrar pela porta estreita”.
Pinto, comentando sobre o contexto no qual está inserida essa passagem, onde
Jesus faz alusão ao Reino de Deus, afirma que “a natureza do Reino é tal que
entrar nele será o privilégio de alguns candidatos improváveis, que estavam
fora da estrutura religiosa de Israel” (2008, p. 139). Se trouxermos isso para
o tempo presente, dentro da realidade da igreja, podemos entender que ocorrerão
muitas surpresas no dia que o Senhor da seara fizer separação entre joio e
trigo. Assim, é fundamental entender que “cartão de membro” não é passe livre
para o céu e que nós realmente não temos como julgar nossos irmãos, porque nossos
critérios são falhos. De acordo com Pinto, a entrada para o Reino é “para
aqueles que escolhem a porta estreita do discipulado” (ibid).
Esse discipulado vai além daquela classe para neófitos, onde são
ensinados os rudimentos da fé e tudo “é maravilhoso e bonito”. Trata-se de
viver segundo as condições que o próprio Jesus estabeleceu para sermos seus
discípulos: renunciar a nós mesmos, tomar sobre nós a nossa cruz e segui-lo (Mt
16.24). Tais condições pedem posturas como renúncia, espírito de sacrifício,
disciplina, submissão, perseverança, vontade e fé, as quais marcam sobremaneira
o caráter de um verdadeiro cristão.
A segunda expressão a qual
dedicamos atenção, reside na determinação do Senhor “apartai-vos de mim, vós todos os que praticais a iniquidade”. Porém,
antes de qualquer comentário, analisemos a palavra “iniquidade” (gr. ἀνομία =
anomia) que, segundo o Dicionário Vine, significa “literalmente, ‘ilegalidade’
(formado de a, elemento de negação, e
nomos, “lei”) [...] ou maldade,
perversidade” (2005, p. 712).
Praticar a iniquidade, portanto, é a “negação da lei”, ou seja, rejeitar
o ensino de Cristo, que foi sintetizado por ele em dois mandamentos, como
podemos ver no texto de Mateus 22. 37-40: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.
O padrão estabelecido por Jesus para amar a Deus carreia implicações
seríssimas sobre nossa vida cristã, porque fala de um amor radical, ou seja,
algo que transcende o mero sentimento de simpatia ou paixão, para se mostrar integral,
incondicional, exclusivo. É uma força que se apodera de nós, gerando a
necessidade premente de um relacionamento contínuo, profundo, íntimo. Esse amor
dá-nos a sensação de filiação e pertencimento a Ele, produzindo temor,
submissão e prazer em serví-Lo. Logo, não abre brecha para que sejamos vacilantes,
duvidosos, medrosos, pois é um amor que confronta e nos coloca à prova todos os
dias.
Assim, não
basta fechar os olhos, cantar um louvor com os braços erguidos e dizer que o
ama, tomado de uma emoção, muitas vezes momentânea. É preciso crer nesse amor
e, para que creiamos, somos provados, levados aos vales e desertos, até que
fiquemos extenuados, desprovidos de esperanças humanas e desnudos de nós
mesmos.
Quando só restar a fé e a esperança
nele, quando sua vida pulsar em nós como único alento para nosso espírito
cansado, e então, louvarmos a Ele, por acreditarmos em sua fidelidade e que a
sua misericórdia dura para sempre (Sl 100.5), brota do íntimo de nosso ser esse
amor genuíno que fomentou no apóstolo Paulo a convicção de que, apesar de todas
lutas e sofrimentos pelos quais passou, “todas as coisas contribuem juntamente
para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28). Foi esse amor que moveu seu
coração a bradar “nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados,
nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a
profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que
está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8.38,39). Em resumo, é um amor que nos
leva ao reconhecimento de que somos um projeto divino, criados e sustentados
pelo Senhor. Então passamos a compreender e a viver a verdade de que dele vem a
vida e sem Ele não há vida que valha a pena ser vivida.
Quando Jesus aborda o segundo
mandamento, “amar o próximo como a ti mesmo”, é interessante recordar que ele
afirma ser semelhante ao primeiro. Isto representa que amar o outro como amamos
a nós mesmos, deve ser algo tão intenso e vívido em nossa existência, quanto o
amor que temos ao Pai. Mesmo porque, amar ao próximo é uma decisão, uma escolha
que vai importar em atitudes que deixarão evidente se realmente amamos a Deus e
qual a dimensão desse amor.
O apóstolo João tinha essa compreensão e evidencia isso,
claramente, ao escrever “se
alguém diz: eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama
a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? E dele temos
este mandamento: que quem ama a Deus, ame também a seu irmão” (1 Jo 4.20,21).
Desta
forma, o amor passa a ser o grande parâmetro para que se possa conhecer quem é
nascido de Deus e conhece a Deus (1 Jo 4.7,8). E não podemos esquecer que conhecer,
no sentido de ter intimidade, é algo que só ocorre com aquele com quem temos
proximidade, convivemos diariamente, sentimos confiança e podemos compartilhar
nossos segredos mais profundos.
Até
aqui, alguém poderia dizer. “tudo bem! Eu amo meus irmãos, não alimento
contendas e trato todos com urbanidade e carinho”. Entretanto, não podemos
esquecer que a Igreja tem uma característica que vai demandar de nós um esforço
maior para amar o outro: a diversidade. Ainda que a carta aos Efésios, em seu
capítulo 4, nos fale acerca de um só corpo, um só Espírito, uma só esperança,
um só Senhor, uma só fé, um só batismo e um só Deus e Pai (Ef 4.4-6), o
apóstolo Paulo roga aos membros daquela igreja que andem de forma humilde e
mansa, recomendando-lhes que usem de longanimidade, procurando suportar uns aos
outros em amor (Ef 4.2). Essa
advertência só faz sentido se refletirmos a partir da ideia das diferenças
interpessoais, das interpretações, conceitos e preconceitos que cada um nutre
em seu entendimento da Palavra.
Somos
seres individuais e isto é maravilhoso: saber que em toda a extensão do
universo e por toda história, não houve e não há qualquer pessoa igual a nós.
Porém, essa exclusividade ou individualidade da qual somos dotados, repercute
na possibilidade do conflito e na necessidade de administrar nossas diferenças.
E é nesse ponto que o caminho fica mais estreito, porque a proposta-mandamento
do Senhor Jesus não fica só no amar ao próximo, todavia aumenta de forma
extremada o nível de exigência, ao ensinar “amai a vossos inimigos, bendizei os
que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam
e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mt
5.44).
Diante
desse discurso, o caminho é tirar o foco do outro, arrancar a trave de nossos
olhos (Mt 7.3-5) e olhar para dentro de nós mesmos, observando a Palavra que,
como nos ensina o escritor aos Hebreus “penetra até a divisão da alma e do
espírito [...] e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração”
(Hb 4.12). Quando mortificamos nosso eu e promovemos uma varredura em nosso
interior, abrindo aquelas “gavetinhas” onde invariavelmente, escondemos o que
temos de mais terrível em nós, encontramos nossas fraquezas, nossas falhas de
caráter, nossos pensamentos impuros, os pecados que, cotidianamente, cometemos,
e podemos, então, compreender que não somos tão melhores que nossos
semelhantes.
Fica mais
claro o que Jesus quis dizer com a afirmação que o Pai faz nascer o sol sobre
maus e bons, e a chuva descer sobre justo e injustos (Mt 5.45). O Senhor estava
nos mostrando que diante do Pai, temos todos a mesma estatura, pois Ele não nos
trata segundo nossos pecados (Sl 103.10). Não há uma meritocracia, pois a graça
salvadora provém dele e foi Jesus quem estabeleceu “um novo e vivo caminho” que
nos leva à sua presença (Hb 10.20).
Jesus nos
aponta, ainda, que o Pai oferece as mesmas condições a todos, pois “quer que
todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4).
Mas, mesmo que aproveitemos essas condições para uma melhor colheita, não
podemos nos gloriar disso, lembrando que o Espírito Santo é que nos ensina e
conduz à verdade.
Essas
reflexões sobre o amor a Deus e ao próximo, nos reconduzem à visão do andar
pelo caminho estreito e ao conceito de discipulado estabelecidos pelo Senhor,
elementos que, obrigatoriamente, nos conduzirão à uma escolha: ou somos Igreja
e refletimos a glória do Senhor em nossa forma de viver, de tratar com o outro
e de encarar a obra de Deus, ou ficamos meramente como participantes de uma
entidade terrena, entretanto sem comprometimento algum com o Reino, sem
envolvimento real com as coisas do mundo espiritual, sem desenvolver nosso
caráter cristão de forma efetiva e sem promover uma comunhão salutar e
edificante com nossos irmãos de fé.
Esta
é uma escolha urgente, pois Jesus está às portas. Lembremos a parábola das dez
virgens (Mt 25.1-13) e cuidemos para que não nos falte o azeite como aconteceu
às virgens loucas. Façamos como a igreja em Filadélfia: mesmo tendo pouca
força, guardemos em nosso coração a palavra e não neguemos por nosso testemunho
o nome do Senhor.
Só assim estaremos abrigados em Cristo, seremos
Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra nós.
REFERÊNCIAS
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Novo Testamento.
São Paulo: Hagnos, 2008.
VINE, W. E.; UNGER, Merryl F.; WHITE JR., William. Dicionário
Vine. 5. ed.
Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2005.
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