"E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" Jo 8.32
As palavras de Jesus afirmam o poder da verdade como a chave para a libertação das prisões da ignorância espiritual. Mas, o que é a verdade? A que verdade Jesus está se referindo? Como podemos conhecer essa verdade?
Estas questões estão intrinsecamente relacionadas a questões filosóficas de ordem milenar, o conhecimento e a verdade, que desaguam em dois outros pontos importantes, onde, o primeiro, repousa nas formas e na origem do conhecimento e, o segundo, diz respeito à validade do conhecimento.
Em nossa breve reflexão, vamos fugir um pouco do caráter unicamente evangelístico que constumamos emprestar a essa passagem bíblica e pensar um pouco sobre a validade desse conhecimento libertador para o cristão, conhecimento que, necessariamente, segundo Jesus afirmou, precisa estar calcado na verdade, e que diz respeito a um dos questionamentos mais perturbadores e instigantes da existência humana: o que é a verdade? Vale ressaltar que estamos partindo dos pressupostos fundamentais de que a verdade existe, que sua forma absoluta está em Deus e que Ele nos transmite essa verdade através da natureza e da Sua Palavra.
Quando observamos a "Alegoria da Caverna" de Platão (na obra "A República" - livro VII), podemos entender que o diálogo ali contido trará sobre como podemos nos libertar da escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade. É uma metáfora acerca da condição dos homens diante do mundo, quanto ao valor do conhecimento filosófico e da educação, como formas de superar a ignorância. Isto representa sair de um entendimento de mundo e de uma explicação da realidade fundados no senso comum, para uma compreensão racional, sistemática e organizada, quanto à vida e às grandes questões que nela estão envolvidas, isto é, um conhecimento fruto da reflexão e do entendimento, que não busca respostas no acaso, mas nas causas, ou seja, o conhecimento filosófico.
Segundo M. James Sawyer, "vivemos numa época em que a filosofia é ignorada, até mesmo por estudantes de teologia [...] A teologia e a filosofia andam lado a lado. Não se pode entender, explicar ou fazer teologia sem conhecer filosofia"(1). Para Aristóteles, o princípio de toda a Filosofia e do ato de filosofar reside no desejo que os homens têm de conhecer a verdade. Assim, se queremos conhecer a verdade e ganhar a liberdade, tal como Jesus asseverou, é necessário que nossa compreensão acerca da vida e do mundo que nos cerca não seja unicamente decorrente das "sombras" que nos projetam, a exemplo dos prisioneiros da caverna de Platão, todavia, fruto de uma reflexão consistente, do estudo sistemático da realidade e da observação acerca do mundo e da vida, com seus cenários e atores.
Nossa busca pela verdade deve ser cuidadosa, meticulosa e bem articulada como o andar daquele que palmilha por um terreno minado, pois segundo as considerações de Norman Geisler e Peter Bocchino, "as aparências podem ser enganosas [...] Uma haste de aço imersa numa vasilha de água parece torta, mas não é torta"(2). Portanto, percebe-se o quanto é fácil nos enganarmos com relação às coisas do mundo físico. Imaginemos, então, como será para obtermos uma percepção do mundo metafísico que seja verdadeira ou a mais próximo possível da verdade.
Assim, verifica-se que este conhecimento, a verdade que Jesus abordava, é algo extremamente precioso, que permeia não só o espiritual, como somos tentados a acreditar, mas também pode ser percebida na natureza, se olharmos dentro de uma ótica mais contemplativa, o que fica evidente no Salmo 19, versículos 1 e 2: "os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite".
Somente o conhecimento desta verdade pode nos esclarecer sobre a realidade do pecado humano, sobre a infalível justiça divina e sobre a concretude do juízo vindouro, elementos que estão diretamente relacionados com a liberdade espiritual do ser humano e com o fim primário da vida dos homens, a saber, a glória de Deus.
Jesus anuncia-se como a verdade (Jo 14.6) e nele cumpriu-se toda a Lei, pois "o fim da lei é Cristo" (Rm 10.4), ou seja a revelação anterior tinha o propósito de preparar os homens para a manifestação da graça divina em Cristo. Como o apóstolo Paulo escreveu aos gálatas, "a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que, pela fé, fôssemos justificados" (Gl 3.24). Portanto, entendo que Deus não limitou a verdade às páginas dos Evangelhos ou do Novo Testamento, mas semeou-a em toda a extensão das Escrituras.
Porém, como conhecer esta verdade em Cristo? Bastaria a leitura da Biblia? Seria uma revelação especial do Espírito Santo através da oração? Um curso de Teologia seria o caminho para encontrarmos a verdade? Ou nada disso é necessário, basta crer?
Devemos lembrar que, como afirmamos no início deste post, não estamos observando, essencialmente, o aspecto evangelístico-soteriológico do texto em João 8.32, o que não redunda em descurar o valor da fé salvadora em determinadas circunstâncias, que em um único segundo pode resgatar o homem de seus pecados. Todavia, nossa abordagem considera de forma mais específica, o conhecimento da verdade e sua com a liberdade espiritual de caráter mais intelectivo e filosófico. Assim, o conhecimento da "verdade que liberta", requer mais do que frequência aos cultos ou atentar para a retórica dos pregadores, vais além da mera leitura das Escrituras e do ato de decorar versículos, não se restringe à oração ou à matrícula em um seminário bíblico. Exige um aprofundamento que vai além desse conjunto de ações, englobando o estudo sistemático e constante da Palavra, a meditação permanente na "lei do Senhor", a prática cotidiana dos princípios divinos consignados na Bíblia Sagrada, a dependência da orientação do Espírito de Deus, a disposição ao diálogo com a diversidade de pensamentos a nossa volta e estar aberto às novas experiências que o Eterno queira nos proporcionar.
Em resumo, para viver esse conhecimento sob a forma da real liberdade cristã, precisamos de uma mudança mental e de comportamento, na qual nossa visão acerca da verdade:
- Não seja alicerçada meramente naquilo que ouvimos e vemos da parte de outras pessoas, as quais, por diversas ocasiões, adotam a postura do "faça o que eu te digo, mas não faça o que eu faço". Que tenhamos uma visão espiritual, reflexiva e profunda.
- Não nos conduza a um estado de estagnação e engessamento tal, onde nos tornamos radicais, cegos e surdos para outras facetas da verdade, que podem e devem ser consideradas em nossa reflexão. Que nos mantenhamos firmes na fé, contudo predispostos a ouvir, aprender e prontos ao aprimoramento.
- Não nos torne insensíveis e indiferentes às mudanças a nossa volta, de forma que não sejamos capazes de sintonizar nossa teologia à realidade contemporânea, sem que nos esqueçamos dos princípios fundamentais onde nossa fé deve estar ancorada. Que estejamos atentos ao nosso tempo, às mudanças e às necessidades éticas, sociais e, sobretudo, espirituais que lhe são próprias.
(1) SAWYER, M. James. Uma introdução à teologia: das questões preliminares, da vocação e do labor teológico, São Paulo: Editora Vida, 2009, p. 12.
(2) GEISLER, Norman; BOCCHINO, Peter. Fundamentos inabaláveis: respostas aos maiores questionamentos contemporâneos sobre a fé cristã: clonagem bioética, aborto, eutanásia, macroevolução, São Paulo: Editora Vida, 2003.
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